quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Náusea

Preciso dizer tudo. Mas tudo é uma série de coisas que vão me ocorrendo muito rápido e nem meus dedinhos bem treinados pelo mestre datilógrafo (aulas que papai me obrigou a fazer aos 11 anos) conseguem acompanhar. Mas a sensação é sempre a mesma - quando não piora. Pior que a pior das culpas, mais doído que ver o Mohammad morrendo afogado. Vontade de que tudo se encha d'água à minha volta, como no (não) suicídio da Laura Brown. Vontade de - como um colega definiu maravilhosamente bem - explodir em mil pedacinhos, o que é mais que vontade de simplesmente sumir. É um desejo profundo de deixar de existir, mas isso não significa vontade de morrer. Dura um instante apenas, ou vários deles repetidamente, mas prometo que é bem rápido.

Isso que se instalou no peito é uma vontade de dizer o que já foi dito milhões de vezes. Mas não adianta dizer, parece, porque nada se resolve. Dizer cansa quem diz e cansa quem ouve e, embora o silêncio não seja a decisão mais sábia, é a mais fácil. Fica só esse nó entalado na garganta, tão apertado que é quase impossível dar bom dia à vizinha mais simpática. Posso viver com isso, acho.

E os olhos, ah, parece que tem uma sombra azul Juliette Binoche em cima deles. Não é o suficiente para cegar, mas é o bastante para tornar tudo turvo, turbulento e doloroso o suficiente para querer esquecer. Esse líquido grosso que está ao redor dos olhos é igual ao da culpa, e acho que é porque já não desce mais nada deles. Não que isso seja exatamente um problema, nunca fui dada a esse tipo de coisa. Quase uma Amanda Woods.

Durante a semana, nós éramos Ozzie e Harriet.

Durante a semana, nós somos Francesca e Richard Johnson.

Vida que segue.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Honey Pie, dos meninos

She was a working girl
North of England way
Now she's hit the big time
In the U.S.A.
And if she could only hear me
This is what I'd say.

Honey pie you are making me crazy
I'm in love but I'm lazy
So won't you please come home.

Oh honey pie my position is tragic
Come and show me the magic
of your Hollywood song.

You became a legend of the silver screen
And now the thought of meeting you
Makes me weak in the knee.

Oh honey pie you are driving me frantic
Sail across the Atlantic
To be where you belong.

Honey pie, come back to me.

I like it like that,
Oohh, I like this kinda, hot kind of music.
Hot kind of music, play it to me,
Play it to me Hollywood blues

Will the wind that blew her boat
Across the sea
Kindly send her sailing back to me.

Honey pie you are making me crazy
I'm in love but I'm lazy
So won't you please come home.

sábado, 5 de setembro de 2009

Gota d'água, de Francisco

Já lhe dei meu corpo
Minha alegria
Já estanquei meu sangue
Quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa
Por favor...

Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água

domingo, 9 de agosto de 2009

As moscas

Aprendi algumas coisas no ensino médio. A mais relevante delas foi que quase nada daquilo me serviria um dia. Mas ainda assim, sei até hoje que um triângulo pitagórico é três quatro e cinco, que F é flúor e não fósforo, que canção de maldizer é mais malvada que a canção de escárnio, que força centrífuga é uma maluquice que não existe pra você vestibulando, que na Revolução Francesa a média de guilhotinadas foi de 126 por dia. Sei também que as moscas têm inúmeros olhos.


Inúmeros, inúmeros. Tantos que cansei de contar. Uns olhos que amam muito, mas que muito antes disso, que vigiam constantemente. Cada olho de cada mosca vigia cada gesto seu. Cada olhar, cada reação, cada comentário, cada tom de voz. Analisam suas risadas e expressões. E não analisam para chegar a alguma conclusão, mas apenas para comprovar uma tese. Se você não ri de uma piada de sexo, por exemplo, você é um hipócrita fingido. Se você cai na gargalhada, você merece queimar no inferno, devasso sem vergonha.

As moscas não se contentam em vigiar cada centímetro seu, nem em criar uma teoria mirabolante que só existe na cabeça delas - e o mais incrível é que as teses geralmente coincidem entre si -, mas ficam zumbindo aquele zumbido interminável de mosca no seu ouvido, eu vou contar, eu vou contar, eu vou contar; ela já sabe; eu vou contar mesmo assim; mas ela já sabe; ela vai saber por mim. Se as moscas soubessem do mal que fazem a ela, será que se contentariam em zumbir apenas entre si?

Posso estar enganada, mas não. Essa família de moscas tem a característica de ter um meio coração, um coração que funciona aqui e ali, que funciona quase sempre que precisa, mas que por algum motivo ainda desconhecido à ciência, falha em se tratando de olhar um grande amor. Um grande amor que não seja o seu, veja bem. Tudo bem você querer se apaixonar por uma profissão (mas só se for a delas), por um livro (mas só se for o delas), por uma foto (mas só se for a delas), por um quadro (mas só se for o delas), por um gosto musical (mas só se for o delas), enfim. Só pode se apaixonar por algo se seus olhinhos sem fim concordarem.

Do amor, as moscas só entendem do seu. E do da mocinha da novela, que é fácil fácil de entender.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

É.


- Melancia.
- Nããão, banana.
- Olha, é melancia.
- Não, é banana.
- Melancia.
- Ba-na-na. Olha bem. É banana.
- Presta atenção. É vermelha, redonda, tem casca verde e sementinhas pretas e brancas. Melancia.
- Eu te garanto que isso é uma banana arredondada, vermelha da casca verde. E com sementes.
- Repito, melancia.
- Insisto, banana.
- Eu acho que é melancia, mas se você diz...
- É banana.
- Juraria isso na frente do tribunal? Eu poderia jurar que é banana se você jurar junto.
- Fechado.
- Banana, então.



sexta-feira, 26 de junho de 2009

Conversa de ônibus

Mulato claro - Que é isso na sua cara?

Mulato escuro - Eu não sei... Mas não é pano branco não!

Mulato claro - Éééé... Pano branco não é assim não.

Mulato escuro - E coça. Isso aqui não coça não.

Mulato claro - Cara, se você pudesse estudar em uma escola particular, onde estudaria? Se eu pudesse eu estudava nessa aqui, ó...

Mulato escuro - Puxa, eu queria estudar no Leonardo...

Mulato claro - Ah, o Leonardo é chato... Não tem piscina, nem parquinho. Não tem nada pra fazer. Você é do Vasco, cara?

Mulato escuro - Sou...

Mulato claro - Eca! Vasco é feio. E foi rebaixado.

Mulato escuro - E você, torce pra que time?

Mulato claro - Palmeiras!

Mulato escuro - ECA! Você sabia que em toda a história do Vasco essa foi a única vez que ele foi rebaixado? O Palmeiras foi rebaixado várias vezes. Você tem alguma coisa do Palmeiras?

Mulato claro - Não... Minha mãe não compra.

Mulato escuro - Eu tenho esse estojo, um chinelo, vários adesivos, um lençol, um travesseiro e um chaveirinho que eu tenho lá em casa...

Mulato claro - Minha vó vê o jogo com a gente, é éngraçado, sabe, cara? Ela fica gritando "vai, meu filho, vai meu filho" pra todos os jogadores, até pra quem tá jogando contra. Meu tio tem que avisar que... que tipo assim aquele lá é argentino. Mas ela não tá gagá não, sabe? Ela só não é muito ligada em futebol.

Mulato escuro - Sei... Você tem todos os avós?

Mulato claro - Eu tenho minha vó minha bisavó meu avô e o meu avô.

Mulato escuro - Eu tenho minha vó minha bisavó minha bisavó, meu avô e... Não, não... Minha avó minha bisavó minha bisavó meu avô e meu avô. Pronto.

Mulato claro - Você tem pai?

Mulato escuro - Tenho. Você tem?

Mulato claro - Tenho. E mãe, você tem?

Mulato escuro - Tenho. Você sabe do que sua mãe trabalha?

Mulato claro - Ela é... Doméstica. Meu pai é porteiro. Olha ali o Banco Central! Você sabe onde fica a Casa da Moeda?

Mulato escuro - No Ministério da Fazenda, é claro.

Mulato claro - Mas onde é que fica o Ministério da Fazenda?

Mulato escuro - Ali naqueles prédios, ó.

Mulato claro - Iiiiih, olha lá aquele cara. Tá bêbado tentando ganhar dinheiro no sinal.

Mulato escuro - Pois é, fica fingindo que tá sambando...

Mulato claro - Não, ele tá sambando. Fingindo é quando você tá fazendo bagunça e a professora entra na sala e aí você finge que não tava fazendo nada. Entendeu? Ele não tá fingindo que tá sambando, ele tá sambando. Mas tá sambando errado.

Mulato escuro - Eu não dou dinheiro. Só quando tá na cadeira de rodas, sabe?

Mulato claro - Ou quando tem a perna fininha, né... Porque aí a gente vê que precisa mesmo... Se bem que não dá pra pedir pra quem tá na cadeira de rodas levantar pra provar que não dá conta... Porque eles não dão conta...

Mulato escuro - Eu não tenho preconceito.

Mulato claro - Nem eu... De quem você tem mais preconceito, de deficiente, de negro ou de homossexual?

Mulato escuro - Eu não tenho nada contra deficiente, nem contra negro... É que nem tratar igual, sabe? Lá no meu bairro tem um menino que chama João mas a gente chama ele de Tizil.

Mulato claro - Hahahahahahaha! Lá na minha rua também tem um Tizil! Mas a gente chama ele assim porque ele sabe que é brincadeira e a gente não tem preconceito.

Mulato escuro - Pois é. Mas de homossexual... Cara, eu acho muito errado.

Mulato claro - Eu também tenho preconceito.

Mulato escuro - Não é preconceito... É que eu não gosto, sabe? Longe de mim tá tudo certo.

Mulato claro - É... É tão esquisito, três milhões de pessoas naquele negócio de Parada Gay...

Mulato escuro - É, cara! É errado! Não tem nada de errado em ser negro ou em ser deficiente, né, você nasce assim e não tem culpa! Mas ser homossexual, sei lá... Eu não gosto.

Mulato claro - Eu nunca pensei em ser isso, sabe... Homossexual.

Mulato escuro - Não! Nem eu! Eca!

Mulato claro - Chegou o meu ponto. Sabe chegar direito até o seu?

Mulato escuro - Eu pergunto pro motorista.

Mulato claro - Até mais, cara.

Mulato escuro - Tchau...

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Você me machuca.

Você me machuca. Você me machuca e não faz ideia de que o faz, pelo simples fato de que eu jamais vou te dizer isso. Você vai rir na minha cara e me dizer pra deixar de levar tudo tão a sério. Por mim, você não vai mudar. Sei disso porque sei que as pessoas não mudam, jamais, nem mesmo por quem se ama. As pessoas não mudam.

Sabe, já me disseram pra não te levar sempre a sério. Essa mesma pessoa já me disse pra não guardar esse tipo de coisa pra mim, pra não ficar com o rancor amordaçado aqui no peito mas olha, não dá pra te contar isso. Você vai rir na minha cara. Vai fazer sua careta tão fofinha e convincente de sou-super-legal-todo-mundo-me-ama-incondicionalmente-e-eu-sempre-tenho-a-razão-em-tudo. Vai dizer que eu é que sou agressiva, eu que te ataco, vai me perguntar, ai menina porque você é assim? E isso me dói, dói, dói, me dói inteirinha, me rasga os órgãos e me aperta o cérebro e me faz querer gritar com você mas eu finjo de surda e penso que eu ainda te amo, que eu ainda te quero bem e que o que você disse não é nada e que eu é que sou a exagerada da história.


O engraçado é que eu faço isso porque você me pediu. Pediu para não ser assim, não te atacar, não ser agressiva. Nunca percebeu que toda vez que eu te atacava, era na verdade um contra-ataque. Uma defesa. Pois agora você me pediu, e estou sem defesas, sem um escudo cheio de espinhos para me proteger de você. E você continua me machucando, e eu acho que é porque eu não te pedi para não ser assim, ou porque você entendeu que é assim que deve me tratar, ou porque você acha o máximo me tratar assim. Não importa, o fato é que você faz isso.


Me desculpa por dizer isso assim, meu bem-querer, não quero que você nunca descubra que a pessoa deste texto é você, e se você descobrir, espero o seu perdão. Mas olha, você me machuca ao ponto de eu escrever um texto só sobre isso.

Você me machuca demais.


Eu te amo. Me perdoa?

sábado, 16 de maio de 2009

Caio e Zézim

Me pediram para escolher um texto para salvar caso o mundo acabe no próximo minuto e eu só possa salvar um. Pesarosa de ter que jogar fora tanta riqueza que existe pelo mundo, escolhi esta carta de Caio Fernando Abreu a seu amigo Zézim, sobre o desafio que é escrever. Para que assim, quem for escrever alguma coisa depois do fim do mundo, já vai avisado de como são as coisas.


Porto, 22 de dezembro de 1979

Zézim,


cheguei hoje de tardezinha da praia, fiquei lá uns cinco dias, completamente só (ótimo!), e encontrei tua carta. Esses dias que tô aqui, dez, e já parece um mês, não paro de pensar em você. Tou preocupado, Zézim, e quero te falar disso. Fica quieto e ouve, ou lê, você deve estar cheio de vibrações adeliopradianas e, portanto, todo atento aos pequenos mistérios. É carta longa, vai te preparando, porque eu já me preparei por aqui com uma xícara de chá Mu, almofada sob a bunda e um maço de Galaxy, a decisão pseudointeligente.


Seguinte, das poucas linhas da tua carta, 12 frases terminam com ponto de interrogação. São, portanto, perguntas. Respondo a algumas. A solução, concordo, não está na temperança. Nunca esteve nem vai estar. Sempre achei que os dois tipos mais fascinantes de pessoas são as putas e os santos, e ambos são inteiramente destemperados, certo? Não há que abster-se: há que comer desse banquete. Zézim, ninguém te ensinará os caminhos. Ninguém me ensinará os caminhos. Ninguém nunca me ensinou caminho nenhum, nem a você, suspeito. Avanço às cegas. Não há caminhos a serem ensinados, nem aprendidos. Na verdade, não há caminhos. E lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vaflejo? não estou certo): “caminante, no hay camino, se hace camino al andar”.


Mais: já pensei, sim, se Deus pifar. E pifará, pifará porque você diz “Deus é minha última esperança”. Zézim, eu te quero tanto, não me ache insuportavelmente pretensioso dizendo essas coisas, mas ocê parece cabeça-dura demais. Zézim, não há última esperança, a não ser a morte. Quem procura não acha. É preciso estar distraído e não esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem desesperado. Tudo é maya / ilusão. Ou samsara / círculo vicioso.


Certo, eu li demais zen-budismo, eu fiz ioga demais, eu tenho essa coisa de ficar mexendo com a magia, eu li demais Krishnamurti, sabia? E também Allan Watts, e D. T. Suzuki, e isso freqüentemente parece um pouco ridículo às pessoas. Mas, dessas coisas, acho que tirei pra meu gasto pessoal pelo menos uma certa tranqüilidade.


Você me pergunta: que que eu faço? Não faça, eu digo. Não faça nada, fazendo tudo, acordando todo dia, passando café, arrumando a cama, dando uma volta na quadra, ouvindo um som, alimentando a Pobre. Você tá ansioso e isso é muito pouco religioso. Pasme: acho que você é muito pouco religioso. Mesmo. Você deixou de queimar fumo e foi procurar Deus. Que é isso? Tá substituindo a maconha por Jesusinho? Zézim, vou te falar um lugar-comum desprezível, agora, lá vai: você não vai encontrar caminho nenhum fora de você. E você sabe disso. O caminho é in, não off. Você não vai encontrá-lo em Deus nem na maconha, nem mudando para Nova York, nem.


Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. Mas de repente você pode estar confuso porque fica todo mundo te cobrando, como é que é, e a sua obra? Cadê o romance, quedê a novela, quedê a peça teatral? DANEM-SE, demônios. Zézim, você só tem que escrever se isso vier de dentro pra fora, caso contrário não vai prestar, eu tenho certeza, você poderá enganar a alguns, mas não enganaria a si e, portanto, não preencheria esse oco. Não tem demônio nenhum se interpondo entre você e a máquina. O que tem é uma questão de honestidade básica. Essa perguntinha: você quer mesmo escrever? Isolando as cobranças, você continua querendo? Então vai, remexe fundo, como diz um poeta gaúcho, Gabriel de Britto Velho, “apaga o cigarro no peito! diz pra ti o que não gostas de ouvir! diz tudo”. Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a “função social”, nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é fundamental na minha vida.

Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de “meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kaflka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud.

É esse tipo de criador que você quer ser? Então entregue-se e pague o preço do pato. Que, freqüentemente, é muito caro. Ou você quer fazer uma coisa bem-feitinha pra ser lançada com salgadinhos e uísque suspeito numa tarde amena na Cultura, com todo mundo conhecido fazendo a maior festa? Eu acho que não. Eu conheci/conheço muita gente assim. E não dou um tostão por eles todos. A você eu amo. Raramente me engano.


Zézim, remexa na memória, na infância, nos sonhos, nas tesões, nos fracassos, nas mágoas, nos delírios mais alucinados, nas esperanças mais descabidas, na fantasia mais desgalopada, nas vontades mais homicidas, no mais aparentemente inconfessável, nas culpas mais terríveis, nos lirismos mais idiotas, na confusão mais generalizada, no fundo do poço sem fundo do inconsciente: é lá que está o seu texto. Sobretudo, não se angustie procurando-o: ele vem até você, quando você e ele estiverem prontos. Cada um tem seus processos, você precisa entender os seus. De repente, isso que parece ser uma dificuldade enorme pode estar sendo simplesmente o processo de gestação do sub ou do inconsciente.


E ler, ler é alimento de quem escreve. Várias vezes você me disse que não conseguia mais ler. Que não gostava mais de ler. Se não gostar de ler, como vai gostar de escrever? Ou escreva então para destruir o texto, mas alimente-se. Fartamente. Depois vomite. Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta. E eu acho — e posso estar enganado — que é isso que você não tá conseguindo fazer. Como é que é? Vai ficar com essa náusea seca a vida toda? E não fique esperando que alguém faça isso por você. Ocê sabe, na hora do porte brabo, não há nenhum dedo alheio disposto a entrar na garganta da gente.


Ou então vá fazer análise. Falo sério. Ou natação. Ou dança moderna. Ou macrobiótica radical. Qualquer coisa que te cuide da cabeça ou/e do corpo e, ao mesmo tempo, te distraia dessa obsessão. Até que ela se resolva, no braço ou por si mesma, não importa. Só não quero te ver assim engasgado, meu amigo querido.


(...)


Let me take you down

cause I’m going to strawberryfields
nothing is real, and nothing to get hung about
strawberry fields forever
strawberry fields forever
strawberry fields forever

Isso é o que te desejo na nova década. Zézim, vamos lá. Sem últimas esperanças. Temos esperanças novinhas em folha, todos os dias. E nenhuma, fora de viver cada vez mais plenamente, mais confortáveis dentro do que a gente, sem culpa, é. Let me take you: I’m going to strawberry fields.


Me conta da Adélia.


E te cuida, por favor, te cuida bem. Qualquer poço mais escuro, disque 0512-33-41-97. Eu posso pelo menos ouvir. Não leve a mal alguma dureza dita. É porque te quero claro. Citando Guilherme Arantes, pra terminar: “Eu quero te ver com saúde/sempre de bom humor/e de boa vontade”.


Um beijo do


Caio



quinta-feira, 14 de maio de 2009

Keith e as baratas

Os maias erraram. O mundo não acabou em 2012. Quem acertou foi um desconhecido pajé brasileiro, que previu o fim do mundo que conhecemos para que um bruxo ressuscitasse e governasse seus fiéis súditos. Mas ninguém nunca deu atenção às profecias dos índios brasileiros porque eles jamais ligaram para essa onda de construir cidades como os maias, astecas e incas. Aí nunca despertaram fascínio internacional, ninguém nunca quis saber o que o pajé maluco falou e o mundo acabou sem ninguém se preparar para isso.

Mas a nossa história começa três milhões de anos antes disso. Começa no ano 2020, quando um nerd viciado em Star Wars desenvolveu finalmente o congelamento em carbonita. Aquele que o Darth Vader apronta com o Han Solo no Episódio V. Aí virou moda, teve muita perua pagando caro para manter o corpinho milimetricamente recauchutado durante os anos. Vários nerds trabalharam duro e desenvolveram sistemas operacionais geniais para descolar um troco e ir fazer parte da odisséia de Han Solo. Caro, muito caro.

Só que para Keith Richards, desde 1964, dinheiro nunca foi problema. Contando 76 anos completos e um corpinho sem idade definida, caprichosamente esculpido em quase seis décadas de estrada, ele resolveu entrar nessa onda de carbonitamento de congelada. Queria, ele dizia, manter uma viagem por três milhões de anos. O tempo máximo de permanência nas cápsulas de carbonita do jovem nerd.

Keith sabia que ficaria em uma viagem maravilhosa por três milhões de anos. Sabia que acordaria feliz depois de tanto tempo nessa onda. O que ele não sabia é que quando ele abrisse a cápsula, serelepe e pronto para outra, ele encontraria o mundo sem vida. O pajé acertara e o mundo vivo acabara em 3002020, segundos antes de Keith abrir sua cápsula.

Não que as cápsulas fossem proteger as pessoas ou qualquer outro ser vivo da explosão. O Keith que era imune a ela. Tendo passado por tanta coisa nessa vida, um estouro nuclear era fichinha.

Muito sozinho e com uma larica danada, Keith começou a andar pela cidade a procura de um supermercado. Achou um prédio enorme e bem suprido e ficou contente. Teria comida pelo resto da vida. E é óbvio que prazo de validade e intoxicação alimentar não seriam coisas que o afetariam.

Comendo gulosamente um pacote família de Doritos, Keith viu uma manchinha no chão alvo do supermercado. Uma barata. Tão sozinha, pobrezinha, mais perdida ali que barata tonta. A piadinha sádica não foi intencional, a coitadinha estava realmente aflita. Keith era um cara legal e deixou ali uma mão cheia de Doritos para a nova amiguinha.

Ela saiu correndo. Que pena, não quer papo. Ela parecia ser interessante, pensou Keith. Nosso herói mal sabia o que estava por vir: uma legião de baratas, famintas com seus olhinhos tristes e carentes. Era demais para ele. Saiu correndo pelo supermercado abrindo os pacotes família de Doritos, Ruffles, Cebolitos e todos os outros salgadinhos que ali marcavam presença.

E nesse glorioso dia, o dia do fim do mundo, três milhões de anos depois de seu tempo, Keith Richards foi proclamado o Rei das Baratas. E, como todos vocês já puderam concluir, o Rei do Mundo. Sem perspectiva de sucessão, é bom avisar.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Depois daquele sétimo mês

As meninas pequenas brincavam ao seu redor. Cinco, quatro e dois anos. Apenas a mais velha era loira e tinha permissão de usar cabelos compridos. As duas moreninhas tinham cabelo de menino. A do meio não gostava nem um pouco disso.

Ela tinha ainda um barrigão à espera. Seria o último bebê, e se fosse menino, ganharia o nome do pai. Largara o emprego de professora para cuidar de suas crias. Era uma mãe severa, mas muito amorosa. O marido era um homem extremamente sério, mas era o pai mais atencioso que aqueles três anjinhos jamais poderiam ter. Um pai preocupado em criá-las para se tornarem grandes mulheres, grandes pensadoras, grandes profissionais.

Acordou naquele primeiro de abril cinzento sem acreditar na mentirinha que lhe contaram: o presidente caiu, os militares estão no poder. Os caças sobrevoando o céu da capital goiana a fizeram acreditar. Temeu pela família. O marido estava indignado e apreensivo, e quatro dias depois daquilo, ele não chegou em casa.

Não dormiu naquela noite. Sabia o que tinha acontecido. só não podia acreditar, mas sabia. Olhava aflita com os olhos verdes cansados para as meninas dormindo em paz e começava a fazer planos para o pior. Só conseguia se desesperar mais e mais.

Na manhã seguinte, recebeu uma visita do cunhado. Olha, Maria, se eles levarem o Marcello pro Rio ele não volta.

Ele não volta.

Ele não volta, eu vou ter esse bebê sozinha e as crianças não vão ter pai.

Ele não volta porque o pior vai acontecer.

Assim ela foi passando um, dois, três, quatro dias, uma semana, duas, três, um mês aflita com poucas e porcas notícias do marido, tendo pesadelos apavorantes dele sendo maltratado, judiado, ensacado e jogado no mar.

Mas Maria é uma mulher de sorte e, ao fim do sétimo mês da sua gravidez, o martírio que durou o resto da vida para tantas outras mulheres acabava. Seu homem voltava para casa e lhe assoprava os buracos do coração.

Depois daquele sétimo mês, Maria se sentava no banquinho branco do quintal para observar suas filhas brincando e rogava a Deus por um lugar onde eles tivessem paz.

Passaram-se dez anos desde aquele sétimo mês, quando finalmente eles conseguiram se mudar para Brasília e ter um pouco de sossego. Ele e as crianças. Ela jamais se recuperou completamente daquilo. Mas conseguiu, sim, ficar em paz.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Nossos olhos

Antônio Campoli era um italiano bravo. Mas é que era o costume, o jeito da época. Viera para o Brasil aos seis anos de idade, para trabalhar na lavoura, e só aprendera o português por aqui. Era um homem forte, trabalhador. Tinha olhos fundos e cansados, olhos sonolentos mesmo quando desperto, claros mas com olheiras, aqueles olhos que mais tarde seriam classificados como olhos de ressaca do mar. Involuntariamente rancorosos. Olhos de Campoli, jamais falharam.

Antônio era casado com Rosa, italiana também, mãe sóbria e responsável de treze filhos. Comandava a cozinha como toda boa italiana: fazendo uma bagunça danada e ai de quem se metesse. Os treze Campoli trabalhavam na roça de café com o pai, os olhos de Campoli e a tez europeia judiados pelo sol brasileiro que banhava a fazenda em São José do Rio Preto. A educação escolar era garantida pelas vizinhas faladeiras que iam dar aula aos treze Campoli em casa. A manutenção da tradição italiana ia além do cardápio, ao contrário do que a maioria pensa. Antônio Campoli fazia todas as refeições sozinho na sala de jantar, enquanto os treze filhos e a esposa comiam na cozinha. Almoçar juntos, só no domingo, depois da missa. Que nem na Itália.

E ali, em meados dos anos trinta, naquela tão interiorana e paulista cidadezinha cafeeira, descobriu-se que João, o Campoli número nove, tinha alergia a lactose. Nada de leite para o menino. No máximo um naco de chocolate ao dia. Naquele tempo, chocolate era algo caro e amargo, e ainda assim todo mundo queria comer. Antônio Campoli mantinha sempre uma barra enrolada em papel metálico na gaveta do seu criado mudo. Depois do almoço, chamava João e dava a ele um pedacinho e dizia para comer bem devagar. Ignorava os olhinhos de Campoli marejados de inveja dos próximos em idade ao pequeno alérgico. Era pouco chocolate para tanta criança e tamanha alergia.

O fato é que João Campoli cresceu e ficou forte. Achou por ali no interior de São Paulo uma moreninha bonita e tratou de desposá-la logo. Dona Cinha teve um filho e duas filhas, todos eles bem Campoli. Viveram os cinco em uma cidadezinha do interior, gerenciando um armazém da forma mais honesta possível, como Antônio e Rosa ensinaram a João.

Paulo, o filho mais velho do casal, quando estava para terminar o ensino médio, pediu para ir estudar fora. Medicina, pai. Deixa eu estudar até o tempo que eu ficaria no exército. Então vai, menino, e vê se passa logo nesse vestibular. Não precisou de um ano: já no meio do cursinho passou na Universidade de Brasília e para lá foi correndo.

Campoli e esquisito como sempre fora, Paulo resolveu estudar Cálculo e tirou o único dez da sala. Foi tirar satisfação com ele uma irada estudante de Engenharia Elétrica, uma moreninha de nariz arrebitado chamada Márcia. Onde é que já se viu um menino da medicina tirar dez em Cálculo? Alguns anos depois, em seu aniversário de 24 anos, a alguns metros de seu bolo com 24 veadinhos de plástico, ele fez seus olhos de Campoli ficarem ternos e pediu a moça em namoro. Mais três anos e estavam os dois casados.

Três anos depois do casório, nascia sem conhecer os bisavós a primeira neta dos Campoli e mais um par dos já familiares olhos de ressaca italiana.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Ianque, cai fora.

Mamãe quase me matou. Esbravejava que onde é que você estava até essa hora, viu o que aconteceu, diz pra mim que não estava lá, você podia ter apanhado, podia ter sido presa, menina ingrata e irresponsável!

Saiu no jornal e tudo mais. Mas também, o que ele esperava? Vindo aqui com essa pompa toda, em pleno regime militar, queria ser recebido com uma dancinha hippie de boas vindas? Fico me perguntando se ninguém avisou que todos nós enterrávamos o Azevedo com frequência, com o devido patrocínio da Arquietetura. Ninguém contou para ele do dia que os milicos cercaram o RU e não deixaram ninguém sair, e a gente jogou banana nos macacos? Bendito seja quem inventou que a sobremesa seria sempre fruta. E quem disse que naquele dia ia ser banana.

Poucos de nós eram corajosos de verdade, tipo o Honestino. A maioria era como eu, tremia igual vara verde, de raiva e de medo, ao se dirigir para a sala de aula e ter a ignorância vestida de preto vigiando a entrada. Teve também aquela história da menina grávida que em uma daquelas invasões da polícia levou uma cassetada elétrica e abortou o nenê. O bicho pegava para o nosso lado até mesmo na época da tal redemocratização.

O fato é que era um dia incerto de novembro de 1981, final de semestre, todo mundo estressado, um horror. Tinha um círculo de palestras no Dois Candangos, e aquele dia era o dia daquele crápula ianque. Pois ele não só ia dar uma palestra naquela universidade que tanto sofria com a ditadura que ele apoiava, como ela não era aberta aos estudantes.

Pífia tentativa de impedir agitação, coitados. Saiu do CA da Engenharia Civil um grupinho mínimo, portando uma faixa com os dizeres “Kissinger, go home!”. Se dirigiram ao minhocão gritando palavras de ordem e chamando quem estivesse por lá para se juntar ao grupo. Pessoas saíam das salas e aderiam àquilo que acabara se tornando uma passeata. Quando vi, desci correndo do mezanino e entrei animadíssima no meio. O que era um grupo de vinte pessoas se tornou um movimento gigantesco no minhocão.

Rumo ao Dois Candangos. Fechado, é claro. Não que isso fosse um problema. A palestra ia acabar mais cedo, só isso. Quem estava perto da entrada começou a bater nas portas e todos faziam muito barulho. Um risco danado de machucar as mãos se o vidro quebrasse, mas não aconteceu nada. O barulho era tanto que a palestra, é claro, teria que ser interrompida.

Se você estava na UnB nesse dia, não estava na passeata e quis comer um sanduíche de ovo com tomate em alguma lanchonete, foi nesse dia que você saiu tristinho de lá, porque simplesmente acabou. Compramos tudo. Fazia-se ali uma linha de produção, desencaixotando os ovos e cortando os tomates ao meio para jogar em quem viesse. Daí um pouco chegaram uns meninos correndo, com uns pregos nas mãos. Haviam furado os pneus de todos os carros oficiais. Só para garantir.

Não tardando a chegar, a polícia estacionou seu camburão ali perto e fez um corredor na entrada para os ministros, diplomatas, figurões e engravatados passarem. Era fabuloso jogar os ovos e os tomates por cima dos capacetes pretos e ver que tinha acertado algo no caminho.

Para fechar nossa tão feliz manifestação, o pessoal percebeu meio tarde demais que não tinha como pegar os carros oficiais. Chegou-se também ao consenso de que não seria cabível que o ex-secretário de Estado dos Estados Unidos, aquele pavão ianque que as autoridades brasileiras faziam questão de puxar o saco, levasse ovada. Partiram, então, para o grande e absurdamente hilário final: entraram no auditório com o camburão, colocaram o homem dentro e se mandaram sei lá para onde.

Vencemos a batalha. Ponto pra gente. E um bom banho pra esses catinguentos, por favor.

Aterrissagem

Naquele dia, ela se permitira sonhar com ele. Sonhou do dia que ele voltaria da reserva e imediatamente pediria sua mão em casamento. E ela, com um sorriso que não lhe caberia no rosto, diria que sim, sim, sim! Assim que eu fizer dezoito e que papai deixar. Então os dois se mudariam para a capital, e ela teria três lindos pimpolhos que eram a cara dele. Ali, ele arrumaria um emprego que lhe tomaria o dia todo, mas ainda assim ele teria tempo e energia para brincar com os filhos de noite e olharia ternamente para ela por cima da macarronada do jantar. Assim que as crianças dormissem, eles fariam o amor tão terno sempre que tivessem fôlego. Sonhou que envelheceriam enrugados e bonitinhos, e iriam juntinhos fazer compras no supermercado. Sonhou também que alguns meses depois que ele morresse dormindo, ela morreria de tristeza. E seriam enterrados juntos e quando ela chegasse à tumba, ele abriria os braços para guardá-la, tal como Abelardo e Heloísa.

Naquele dia, ele chegou lindo e fardado à porta da mercearia do pai dela, pediu o privilégio de falar a sós com a moça e recebeu a permissão. Ela não cabia em si de felicidade, sorrindo as sardas tímidas e os dentinhos tortos. Não havia homem mais bonito no mundo que aquele que o caminhão do exército acabara de arremessar à sua porta. Seria sim, ele, seu grande amor, a tampa da sua panela, o homem sóbrio ao seu lado na foto do casamento.

Naquele dia, ele disse que nosso amor é tão bom mas o horário nunca combina. Disse também que tinha sido bastante bom namorar com ela mas ele tinha que ganhar o mundo e provar seu valor para aquela cidade ingrata. Toma aqui a mecha ruiva do teu cabelo, guarda pra quem te queira.

Naquele dia, ele foi embora e, mesmo tendo avisado, ela era uma louca a perguntar o que é que a vida vai fazer de mim.

terça-feira, 28 de abril de 2009

O dia em que eu traí o movimento

Eu prometi que continuaria sendo eu mesma. Ele jamais me mudaria, jamais arrancaria de mim meu coração e meus pensamentos e minhas opiniões e me transformaria em uma comum, mais uma namorada gente boa que faz tudo pelo namorado só para o danadinho tirar a toalha molhada de cima da cama gentilmente ao ser requisitado.

Mas o fato, ah, meus amigos, o fato é que eu acabei sucumbindo. Sucumbi ao meu maior asco, o maior motivo de reclamações com os meninos da faculdade, aquele assunto que eu abomino e que não acredito que qualquer pessoa com o mínimo de amor próprio tem o disparate de conversar sobre. Devo, portanto, me explicar perante meu relativamente fiel público do último ano, para não perdê-los e nem ficar desacreditada.

Não era pouca coisa, vejam bem. Era briga de cachorro muito grande. O pobrezinho estava tremendo de nervoso e excitação, embrulhado que nem criança naquele tecido amarelo, branco e vermelho, como se soubesse do que iria acontecer mas ainda assim torcesse para o melhor. Me olhava ansioso enquanto eu cozinhava, ia toda hora para a cozinha para ver se o molho estava pronto. Assim que derramei a massa vermelha cuidadosamente preparada e congelada por minha mãe em cima do miojo imaculado, ele agarrou minha mão e me levou correndo para a frente da televisão, já sofrendo porque o time do coração já levara um gol.

Pronto, contei. No sábado passado eu vi um jogo de futebol do começo ao fim. Torcendo em solidariedade ao namorado entrando em desespero a cada gol que aquele goleiro incompetente levava, e ao mesmo tempo tentando reconfortá-lo. Fiz coro às suas reclamações, falando coisas horríveis sobre a mãe do juiz, sobre o sorriso amarelo e indecente do técnico do time, sobre o jogador agressivo e inútil que acabou fazendo o gol de honra, sobre minhas dúvidas quanto à heterossexualidade dos jogadores do time adversário. Ah, sim, eu fiquei nervosa, apertei forte a mão dele a cada chute a gol e quis quebrar a televisão quando o goleiro deixou passar uma, duas, três, quatro bolas.

Sim, pessoal, eu fiquei bastante próxima à histeria em um jogo de futebol.

E 2009 não é ano de Copa.

Mas não se desesperem! Eu ainda detesto futebol, prometo. Vou sempre revirar os olhos com esse papo de Ronaldo Corinthians Flamengo Verdão e sei lá mais o quê. Ainda vou assistir histericamente aos jogos da Copa, tendo minha dose de futebol mais que suficiente para quatro anos. Só não garanto que não vou mais torcer para o time do namorado de vez em quando.

Porque agora ver o coitadinho sofrendo sozinho e desamparado, sem colo (sim, por onze caras correndo atrás de uma bola), é que arranca meu coração.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Trem-fantasma

Ela calçava meu all star cor-de-rosa com as mãos morenas enquanto Heitor aprontava sem barulho atrás dela. Liege entrou na sala, emburrada porque teria que esperar pelos chocolates da Turma da Mônica até depois do almoço. A minha querida então terminou de me calçar e correu desesperada até o meu irmão, que misteriosamente havia conseguido parar em cima do armário. E então ele, querido até o último fio de cabelo castanho, entrou com os olhos verdes de tão ternos e perguntou quem é que ia ao Mutirama.

Eu! Eu! Eu! Eu! Eu mal conseguia acreditar naquele lugar, fiquei parada olhando para tantas naves espaciais e foguetes coloridos e mais pra frente tinha uma trilha de carrinhos e ali do outro lado também tinha um carrinho bate-bate e duas – eu disse duas – rodas gigantes e olha só o tamanho daquele tobogã todo colorido de azul amarelo vermelho eu quero ir na barca pirata!

Esperando, esperando, esperando esse trem, esse tal de ingresso, nós três corríamos em círculos e apontávamos para todos os lados. Liege parecia prestes a sair correndo para o tobogã a qualquer minuto e Heitor olhava curiosíssimo para uma lixeira em formato de arara. Eu queria ir naquele ali que girava as pessoas para o alto. Por fim o querido apareceu com os ingressos e os cinco grandes tiveram que nos segurar para que não saíssemos correndo em todas as direções.

Nós queríamos engolir todas as cores do Mutirama. Os grandes tiveram que escolher para nós o que fazer primeiro, porque estávamos os três muito encantados com todos os brinquedos. A minha querida quis ir primeiro na xícara maluca, que tremia igual o fusca vermelho do querido e fazia um barulhão mais alto que o da batedeira da vovó. Depois a Liege inventou de ir na barca pirata, e o coitadinho do Heitor ficou verde de medo, enquanto ela se divertia balançando os bracinhos brancos para o alto. O querido resolveu que ia todo mundo para o carrinho bate-bate, e eu, é claro, arranjei briga com um dos meninos que estavam brincando.

Tudo era lindo e colorido, os cavalos do carrossel eram de verdade e o voo do foguete chegava ao sol lá no céu tão azul e voltava em segundos. Eu vi o mundo todo do alto da roda gigante prateada e desci o tobogã cinco vezes, todas elas num dos escorregadores vermelhos. Heitor só conseguiu ir sozinho quando a querida e a outra grande viraram de costas para ele. Eu me divertia tanto, mal esperava o que estava por vir.

Mas nem pensar, justo esse, Paulo, Qual o problema, Tio Paulo eu que não vou nesse aí porque se não eu não durmo de noite, Olha o Heitor também não vai ele é muito medroso, Tá me dá aqui a menina.

O querido pegou a minha mãozinha com sua mão enorme e forte e me levou em direção a um lugar diferente, que não parecia com uma aventura espacial. Não vou sentir um ventinho gostoso no rosto como eu senti no tobogã, pensei, olhando para o lugar fechado, escuro e sem cor para onde ele me levava. Os monstros desenhados nos carrinhos não pareciam monstros de outra galáxia. Não vi crianças da minha idade na fila, mas como o querido queria me levar, não falei nada, apenas perguntei que era aquilo. Em resposta, ele deu um sorriso daquela cor que só ele tinha e disse, chouriço procê levar pro teu serviço.

O carrinho começou a andar, tremendo como a xícara maluca, mas devagar como eu nunca tinha visto antes, fantasmagoricamente. Ao contrário do que eu pensei, havia sim um ventinho frio soprando nas minhas bochechas e afastando minha franjinha loira do rosto. As luzes verdes e vermelhas brilhavam, iluminando muito mal uns monstros que pareciam ter saído da Caverna do Dragão. Feios, muito feios, de assustar. Vi uma aranha no teto e logo depois senti uma cosquinha nas costas: será que ela havia pulado em mim? A aranha subiu em mim, papai, eu disse a ele, rindo, verde das luzes.

Foi aí que eu vi que tudo ali dentro se mexia: as teias de aranha feitas de fumaça branca, as paredes escuras de tijolos podres (seriam de mentira?), e os monstros. Eram tão grandes! Tinha um do tamanho do querido, mas todo peludo e com uma cara de macaco misturada com morcego, com uns dentes amarelos e gigantescos e pontudos, e o vento foi ficando mais frio e esbranquiçado, os sons do lugar cada vez mais secos e da cor do medo, fui arregalando os olhos, e eu quase morri quando o querido disse, fazendo cosquinha na minha barriga, buuuuu!

Quase morri. Quase morri de tanto gargalhar minha gargalhada multicor.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

O grande mal feminino

Vou relevar o fato de que Gabriel García Márquez já fez a revelação que estou prestes a fazer, levando em conta que ele citou isso rápida e furtivamente em um de seus livros, mas não dissertou muito sobre o assunto. Às outras mulheres, peço o mais desvergonhado dos perdões, avisando já de antemão que vou contar ao mundo (ou pelo menos aos meus pobres leitores) um dos maiores segredos femininos.

De todos os sentimentos difíceis de aguentar sentir, existe um que é insuportável para todo o sexo feminino. Parece que o coração e os pulmões e a traquéia se enchem de um veneno grosso igual petróleo e doído que nem uma injeção que não acaba e não para de doer. Uma dor praticamente física, pois provoca uma falta de ar desesperadora que nem a maior das hiperventilações resolverá na hora. E parece que nunca vai acabar, a sensação de sufocamento permanece por horas. Além disso, os canais lacrimais pesam toneladas e dos olhos não sai uma gota sequer. A vontade é de chorar? É de gritar? Difícil dizer. Difícil desabafar.

Talvez eu só esteja dizendo isso porque só eu me sinta assim. Pode ser que seja coisa do meu signo, sabe, o posicionamento dos astros no dia e na hora que eu nasci determinam completamente minha personalidade e culminam nesse processo de sentir uma dor quase física quando eu sinto isso. Ou quem sabe a minha característica é o doer mais por ser orgulhosa demais para deixar a dor transparecer.

Mas eu acho que é feminino.

Eu acho que não suportar a culpa é feminino.

(E se você consegue fazê-lo, seu cromossomo X tem um defeito de fabricação. Vá a um analista e resolva já isso.)

Vejam bem: ninguém gosta de sentir culpa. Mas o insuportável da coisa só vem para as mulheres. Tão intragável que muitas choram copiosamente as lágrimas grossas que lhes pesam os olhos, outras bebem o mundo para tentar esquecer – e mesmo com toda bebedeira, lá está a culpa maldita -, outras brigam feio com alguém sem motivo algum, mas a maioria usa a saída clássica feminina: joga a culpa em alguém para não senti-la mais.

Não devem, portanto, os homens se zangarem quando suas companheiras passam a culpa da situação para eles: sim, queridos, vocês aguentam melhor. Mas é porque vocês não saberão nunca, jamais, como a culpa dói.

sábado, 11 de abril de 2009

Irene

Abriu os olhos e viu as costas do seu homem, respirando calmamente. E então lembrou da perseguição dos ladrilhos azuis. Eram nove horas, hora de ir. Levantou da cama num salto, pegou a bolsa, abriu a porta e saiu na rua como estava: nua da cintura para cima, os pés descalços. Não se incomodando com os olhares obscenos dos homens surpresos, operários trabalhando ou mendigos dorminhocos ou homens de negócios em seus carrões, ela caminhou pela calçada até o meio fio, não sentindo nada nos pés. Havia um colchão de ar para ela passar.

Viu o Ônibus Vermelho, acenou, mas o motorista explicou que não era Ônibus não. De fato, era um caminhão de dois eixos da Coca Cola que vendia sorvetes Kibon. Cedo demais para sorvete, pensou, então dá aqui a casquinha e bota uns Doritos dentro e vê se não esquece de jogar leite em cima. E então, lembrou que os Ônibus passavam na rua de baixo e passou do lado do parque de preservação do clima antártico que havia ali. Percebeu, então, que o homem de sunga que fazia cooper olhava para seus seios. Olhou para baixo e pensou que talvez fosse uma boa idéia colocar o sutiã. Procurou dentro da bolsa e o vestiu ao contrário para não dar remela.

Chegou ao ponto de Ônibus onde todas aquelas estudantes vestidas de marinheiras andavam de mãos dadas e se beijavam ruidosamente. Os olhos puxados e ousadamente maquiados de todas elas se detiveram na louca que chegava, por dois segundos, e então elas pularam dentro do Ônibus Amarelo. Ela começou a andar de um lado para o outro no ponto, respeitando os limites das suas paredes de ar, enlouquecendo porque o Ônibus não chegava logo e era tarde muito tarde.

Moço esse Ônibus vai para, Não, ele fica parado daqui duas quadras, Serve, Não serve não, Então rala daqui, diacho.

Moço esse Ônibus vai para, Sim mas ele dá uma volta enorme, Pode ser, Então seja bem vinda.

Deu oito voltas na cidade amarela laranja roxa naquele Ônibus Cor de Rosa onde só entravam oompa-loompas com chapéus de mexicano e finalmente parou no ponto que queria. Correu, subiu a colina e o penhasco e o cânion, correu como gostaria de correr em seus sonhos, mais rápido que qualquer criatura na Terra. Ainda correndo, subiu as paredes, escalou a sacada, atravessou o vidro sem ruído e entrou.

Vem deitar aqui comigo disse seu homem e ela disse espera só um pouquinho pra eu tirar a maquiagem e deitou do lado dele e dormiu.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Rock and Roll

A primeira vez que eu o vi, ele era apenas um pacote embrulhado em uma manta branca, minúsculo e indefeso, dormindo sossegado. Eu o amei naquele exato instante, mas nem imaginava que um dia ele se tornaria uma estrela do rock. E muito menos que ele se tornaria um dos meus melhores amigos.

Não podia segurá-lo a não ser que eu me sentasse no sofá da casa dele e ficasse quietinha, bem rápido para a foto e passa já o menino pra cá porque você é muito nova pra ficar segurando neném. Ah, e ele chorava tanto! Nervosinho. Barulhento como um roqueiro-problema. Mas ele também era diferentão, alternativo. Seu cabelo não nascia no formato típico moicano rebelde, mas exatamente o contrário. Irreverente e incomum. Se formava ali um ídolo jovem e eu só queria saber de observá-lo e conversar com ele em tatibitate.

Desde quando tinha idade para ir ao cinema, eu o levava sempre que podia. E ele jamais me decepcionou: o rapaz tem bom gosto para animações e filmes infantis, como bom artista que se preza. A minha revelação, no entanto, surgiu quando ele estava às portas da adolescência, ainda naquela fase em que eles odeiam beijos e abraços e morrem de nojo das meninas: nem a mamãe ganha beijo, imagine só se eu ganharia.

Fui averiguar seu gosto musical, só para saber qual a banda horrorosa cujo vocalista não canta, grita, estava na moda. Para a minha surpresa, ele se interessava por rock de qualidade. Ou pelo menos por aquilo que eu considero música boa. E então eu, frenética, passei a apresentar-lhe minhas bandas atuais preferidas, explicando do que se tratava. Acima de tudo, mostrei a ele toda a velharia que eu amo tanto: Beatles, Janis Joplin, Jimi Hendrix. Contei a ele algumas histórias divertidas. Ele gostou de muita coisa, achou outras ruins ou difíceis demais.

O fato é que havíamos nos tornado melhores amigos. Todo almoço de domingo eu fazia questão de sentar ao seu lado e, quando ele menos esperava, eu me inclinava em sua direção e lhe contava uma história. Ele ria, fingia-se de interessado, ou se interessava de fato. Comprei CDs para ele, emprestei meu mp3 player, vistoriei o dele. Tudo pela boa formação musical do menino.

Hoje ele é um adolescente chato, como todo adolescente que se preza. Mas manteve o bom gosto que a prima lhe ensinou. Descobriu recentemente que tem um talento maravilhoso para desenho, assim como a estrela do rock Paul McCartney. Também tem praticado os clássicos do rock em sua guitarra de plástico nova, hoje ele parece até o Jimi Hendrix.

Pode-se culpar a idade pelo comportamento de estrelinha do rock, mas todos sabem que debaixo daquela neve mora um coração. E ele é, de longe, a pessoa mais sensível e amorosa da família. E fica cada dia mais bonito. Mas o mais impressionante não é nem seu talento na guitarra, nem seu vasto conhecimento em rock and roll.

Ultimamente, ele tem abraçado e beijado a mãe, as primas, as tias e as avós. E o pai, os tios, o primo, e para o vovô ele reserva um aperto de mão muito caloroso.

Os tempos mudam. O rock permanece.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

O Faisão Vaidoso

Júpiter resolveu criar um soberano dentre os pássaros e fez saber que, num certo dia, todos juntos deveriam vir à sua presença. Nesse dia, ele pessoalmente escolheria o mais belo dentre todos, para ser proclamado o rei dos pássaros.

Uma Gralha, sabendo de sua própria feiúra, saiu procurando nos campos e florestas as penas que haviam caído das asas dos outros pássaros, e juntando tudo, colou-as por cima de sua plumagem.

Quando chegou o dia marcado, e os pássaros se apresentaram diante de Júpiter, a Gralha desfilou com sua elegante e exuberante plumagem.

Como Júpiter pretendia torná-la o rei por conta da beleza da sua plumagem, os outros pássaros indignados protestaram, e cada um arrancou dela a pena que lhe pertencia, e a Gralha era outra vez apenas uma Gralha.

Juno, a esposa de Júpiter, achou aquela agressão um absurdo e exigiu que as penas artificiais da Gralha lhe fossem devolvidas, mas não antes de serem todas lavadas e lustradas com cera de pena de cisne. Para a cerimônia da coroação, mandou afiar-lhe as unhas como as das águias e moldar-lhe o bico feito um de coruja. E foi assim que a Gralha tornou-se o pássaro feio que dói mais bonito que existe.


Moral da história: não há absolutamente nada que uma boa plástica não resolva.

Leona

Naquele mundo selvagem onde vivia, ela era a fêmea mais temida. As criaturas menores e mais frágeis se escondiam apavoradas ao som de seus passos leves e ameaçadores. Até mesmo suas semelhantes a respeitavam, vinham lhe pedir conselhos e ensinavam suas crias a se espelharem nela.

De todos os machos do lugar, apenas dois conseguiram se aproximar o suficiente para dar a ela filhotes: tinha um de cada. Ao contrário das outras fêmeas, não permitia que os machos chegassem perto e muito menos que pegassem sua caça. Fuzilava-os com o olhos e se algum desavisado se atrevesse a dar um passo em sua direção enquanto comia e alimentava suas crias, ela rugia ferozmente e o espantava.

Seu pêlo era todo desgrenhado, sua cara suja dos restos da comida, suas patas imundas do chão. Tinha um corpo muito magro, mas muito forte: eram tempos difíceis. Seus dentes não eram brancos ou bonitos, mas eram os mais afiados e assustadores da região. Porém, o que mais assustava nela eram os olhos, rasos e vazios, escuros e dilatados, sem passado, sem história, sem dor ou paixão. Refletiam sua essência sem mostrar a alma, se é que ela possuía algo assim.

Gozava de inteira liberdade em seu território. Ninguém a incomodava, nem ficava em seu caminho, ela era perfeitamente livre para fazer o que bem entendia. Chegou um dia, porém, que tudo isso lhe foi arrebatado de uma só vez e tão depressa que ela nem teve tempo para raciocinar. Um macho novo no local se aproximou enquanto ela comia, ignorou seu olhar feroz e seu rugido gutural, e simplesmente roubou seu alimento.


Sem hesitar, ela pulou em seu pescoço e tirou sua vida num instante. Quando ia voltar para sua refeição, um bando de homens a cercou, espancou e prendeu, e quando ela deu por si, estava presa numa cela.


E ali foi ficando. Deram-lhe um banho. Deram-lhe comida. Logo todo pêlo do seu corpo estava lustroso e seus ossos se recobriam de carne. Mas mesmo saudável, ela ia definhando. Sem poder rugir, perdeu a voz. Sem ninguém por perto, perdeu o porte. Sem se exercitar, seu sangue se tornou veneno em suas veias. Com duas semanas de cárcere, Leona morreu de tristeza.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Lúcia, o bigode e o monstro

            Lúcia acabara de recortar o encarte do seu disco novo: o bigode do Sargeant Pepper, as insígnias e os botões do uniforme. Colou tudo na sua roupa cor de rosa, escolhida especialmente por causa da farda usada por seu maior ídolo na capa. Pendurou o bigode no nariz, calçou as galochas e saiu marchando como o irmão dissera que era o certo. Havia chovido a cântaros naquele dia, mais que o normal naquela parte da Inglaterra. As galochas de Lúcia faziam barulhos engraçados contra a grama e contra suas meias de lã.

            Chegando ao lago, sentou-se no deque, tirou os sapatos e a capa de chuva e estirou-se na madeira já seca. Cantarolou When I'm Sixty-Four, sua faixa favorita do álbum. Foi cantando cada vez mais e mais baixinho, e enquanto isso viu três meninos que aparentemente cabulavam aula do colégio, pois ainda usavam seus uniformes azulados e andavam furtiva e euforicamente pela estrada, fumando cigarros baratos.

            Não quis mais prestar atenção neles e olhou para o céu. Fechou os olhos e admirou o vermelho (ou seria laranja?) que enxergava das pálpebras. Ficou ali, passando os dedos pelo ar para ver suas sombras projetadas, quando tudo ficou escuro. Lúcia abriu os olhos e viu que os três meninos a observavam em pé, rindo. Provavelmente do meu bigode genial, pensou. Mas então ela olhou direito e viu que não eram meninos normais. Seus uniformes não eram de escola, mas uma roupa azul afofada e botas de verniz que lhes chegavam até a cintura. O mais estranho, no entanto, era a pele deles: azul, contrastando com os lábios vermelhos de fazer inveja à namorada do irmão e os dentes mais amarelos que os do vovô, fumante desde os doze anos.

            Lúcia abriu a boca para dizer alguma coisa, para ralhar com eles, onde é que já se viu me cercar desse jeito, quando viu três pares de mãos azuis com seis dedos em cada de aproximando dela. Sem pensar nenhuma vez, a menina pulou na água e saiu nadando desabalada para a outra margem, e, para o seu completo terror, os malvados azuis já haviam chegado lá. Ou eram mais três? Lúcia procurou outra margem, mas os malvados a cercavam e a ameaçavam com seus doze dedos cheios de unhas pontudas.

            Por fim, resolveu ficar no meio do lago. A essa altura, já havia malvados azuis em toda parte, e eles se mobilizavam para construir uma ponte a partir do deque para ir buscá-la. Outros fabricavam varas de pescar, para fisgar a menina. Lúcia sentia a água gelada machucar-lhe os ossos. Toda sua valentia se esvaía, e ela se viu se rendendo ao choro. Seu lindo bigode estava destruído pelas lágrimas quentes e caiu na água assustadoramente fria, fazendo uma pequena onda a sua volta.

            Estranhamente, a onda foi ficando mais forte. Lúcia começou a chorar mais ainda, já não enxergava nada. Eles vão me pegar, lamentou-se. E enfim, um par de mãos alcançou seu corpinho infantil. Não se atrevera a olhar, mas sentiu dez dedos tocando-a, e não doze. Abriu os olhos e viu, incrédula, um rapaz lindíssimo. Olhos redondos e castanhos, sobrancelhas altas, um sorriso confiante e irresistível. Atrás dele, um monstro amarelo com outros três rapazes em cima. Nadaram até lá, e ele a entregou ao mais baixinho, de nariz grande e brilhantes olhos azuis. Lúcia não conseguia crer no que via.

            Não teve tempo para acreditar. Seu salvador já subia em cima do monstro e os outros dois discutiam. Os quatro chegaram a um consenso (embora um deles tenha ficado levemente desapontado, parecia querer resolver o problema com uma boa briga), e disseram, aos malvados, em uníssono: tudo que vocês precisam é amor. E então o rapaz dos olhos azuis seguiu o que parecia ser mais novo, que entrava dentro do monstro, e passou Lúcia para seu colo.

            Lúcia ganhou roupas novas, vindas direto da Índia, desse quarto rapaz. Tomou um banho quente e delicioso e quando saiu, viu que tinha um bigode novinho em folha esperando por ela ao lado de sua nova cama. Pendurou no nariz e foi juntar-se aos novos amigos.

            - Quem são vocês?

            - Nós somos uma grande banda. Nada mais, nada menos. - respondeu o moço das sobrancelhas altas.

            - E para onde estão me levando?

            O rapaz dos olhos azuis sorriu, divertido, e entregou-lhe uma flor de celofane.

            - Gosta de tangerina? – perguntou o moço mais novo. Lúcia fez que sim.

            - Estamos indo para um lugar que tem muitas árvores de tangerina. E um céu de marmelada. E táxis de jornal. – o rapaz brigão respondeu da cabine, agora sorrindo simpático.

            Lúcia sorriu, tímida. Parecia bom.

 

***

 

            - Papai, viu meu desenho?

            - Quem é essa, Jules?

            - É a Lúcia.

            - E que a Lúcia está fazendo?

            - Ela está no céu, papai. Lúcia está no céu com diamantes.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

How it ends - DeVotchKa

Hold your grandmother's Bible to your breast
Gonna put it to the test
You want it to be blessed
And in your heart, you know it to be true
You know what you gotta do
They all depend on you
And you already know
Yeah, you already know how this will end
There is no escape
From the slave-catchers' songs
For all of the loved ones gone
Forevers not so long
And in your soul
They poked a million holes
But you never let em show
C'mon it's time to go
And you already know
Yeah, you already know how this will end
Now you've seen his face
And you know that there's a place in the sun
For all that you've done
For you and your children
No longer shall you need
You always wanted to believe
Just ask and you'll receive
Beyond your wildest dreams
And you already know
Yeah, you already know
How this will end
You already know (you already know)
You already know (you already know)
You already know - how this will end