Lúcia acabara de recortar o encarte do seu disco novo: o bigode do Sargeant Pepper, as insígnias e os botões do uniforme. Colou tudo na sua roupa cor de rosa, escolhida especialmente por causa da farda usada por seu maior ídolo na capa. Pendurou o bigode no nariz, calçou as galochas e saiu marchando como o irmão dissera que era o certo. Havia chovido a cântaros naquele dia, mais que o normal naquela parte da Inglaterra. As galochas de Lúcia faziam barulhos engraçados contra a grama e contra suas meias de lã.
Chegando ao lago, sentou-se no deque, tirou os sapatos e a capa de chuva e estirou-se na madeira já seca. Cantarolou When I'm Sixty-Four, sua faixa favorita do álbum. Foi cantando cada vez mais e mais baixinho, e enquanto isso viu três meninos que aparentemente cabulavam aula do colégio, pois ainda usavam seus uniformes azulados e andavam furtiva e euforicamente pela estrada, fumando cigarros baratos.
Não quis mais prestar atenção neles e olhou para o céu. Fechou os olhos e admirou o vermelho (ou seria laranja?) que enxergava das pálpebras. Ficou ali, passando os dedos pelo ar para ver suas sombras projetadas, quando tudo ficou escuro. Lúcia abriu os olhos e viu que os três meninos a observavam em pé, rindo. Provavelmente do meu bigode genial, pensou. Mas então ela olhou direito e viu que não eram meninos normais. Seus uniformes não eram de escola, mas uma roupa azul afofada e botas de verniz que lhes chegavam até a cintura. O mais estranho, no entanto, era a pele deles: azul, contrastando com os lábios vermelhos de fazer inveja à namorada do irmão e os dentes mais amarelos que os do vovô, fumante desde os doze anos.
Lúcia abriu a boca para dizer alguma coisa, para ralhar com eles, onde é que já se viu me cercar desse jeito, quando viu três pares de mãos azuis com seis dedos em cada de aproximando dela. Sem pensar nenhuma vez, a menina pulou na água e saiu nadando desabalada para a outra margem, e, para o seu completo terror, os malvados azuis já haviam chegado lá. Ou eram mais três? Lúcia procurou outra margem, mas os malvados a cercavam e a ameaçavam com seus doze dedos cheios de unhas pontudas.
Por fim, resolveu ficar no meio do lago. A essa altura, já havia malvados azuis em toda parte, e eles se mobilizavam para construir uma ponte a partir do deque para ir buscá-la. Outros fabricavam varas de pescar, para fisgar a menina. Lúcia sentia a água gelada machucar-lhe os ossos. Toda sua valentia se esvaía, e ela se viu se rendendo ao choro. Seu lindo bigode estava destruído pelas lágrimas quentes e caiu na água assustadoramente fria, fazendo uma pequena onda a sua volta.
Estranhamente, a onda foi ficando mais forte. Lúcia começou a chorar mais ainda, já não enxergava nada. Eles vão me pegar, lamentou-se. E enfim, um par de mãos alcançou seu corpinho infantil. Não se atrevera a olhar, mas sentiu dez dedos tocando-a, e não doze. Abriu os olhos e viu, incrédula, um rapaz lindíssimo. Olhos redondos e castanhos, sobrancelhas altas, um sorriso confiante e irresistível. Atrás dele, um monstro amarelo com outros três rapazes em cima. Nadaram até lá, e ele a entregou ao mais baixinho, de nariz grande e brilhantes olhos azuis. Lúcia não conseguia crer no que via.
Não teve tempo para acreditar. Seu salvador já subia em cima do monstro e os outros dois discutiam. Os quatro chegaram a um consenso (embora um deles tenha ficado levemente desapontado, parecia querer resolver o problema com uma boa briga), e disseram, aos malvados, em uníssono: tudo que vocês precisam é amor. E então o rapaz dos olhos azuis seguiu o que parecia ser mais novo, que entrava dentro do monstro, e passou Lúcia para seu colo.
Lúcia ganhou roupas novas, vindas direto da Índia, desse quarto rapaz. Tomou um banho quente e delicioso e quando saiu, viu que tinha um bigode novinho em folha esperando por ela ao lado de sua nova cama. Pendurou no nariz e foi juntar-se aos novos amigos.
- Quem são vocês?
- Nós somos uma grande banda. Nada mais, nada menos. - respondeu o moço das sobrancelhas altas.
- E para onde estão me levando?
O rapaz dos olhos azuis sorriu, divertido, e entregou-lhe uma flor de celofane.
- Gosta de tangerina? – perguntou o moço mais novo. Lúcia fez que sim.
- Estamos indo para um lugar que tem muitas árvores de tangerina. E um céu de marmelada. E táxis de jornal. – o rapaz brigão respondeu da cabine, agora sorrindo simpático.
Lúcia sorriu, tímida. Parecia bom.
***
- Papai, viu meu desenho?
- Quem é essa, Jules?
- É a Lúcia.
- E que a Lúcia está fazendo?