domingo, 23 de novembro de 2008

O dia que não foi

Aquela coisa a perseguira a manhã toda. Estafada, derrotada, ela por fim se sentou naquele banco de tijolos alaranjados e quadrados no meio da rua e berrou para cima, com toda força que tinha, cai, cai logo, e vê se cai de uma vez. E, como se desse uma risadinha sarcástica, a estrela demorou um pouquinho para cair, para dar esperança a ela, e depois despencou com toda força em suas pernas trêmulas.
Carregou aquilo para casa. A estrela lhe feria as mãos, mas não sangrava, nem queimava, nem nada aparente. Comeu-a no almoço. Aquilo lhe doía a garganta, ardia o estômago, deformava os talheres. Tinha um gosto azedo e espinhoso, dolorido. Quis se sentir mulher, e para aplacar a dor comeu o chocolate ao leite mais amargo que já provara.
Naquele dia, ela, que nunca chorava, colocou tudo para fora. A estrela doía demais no estômago para seu ego agüentar. Chorou todas as suas mágoas e suas dores, reclamou para as pessoas amadas de todos os seus problemas tão mesquinhos (seriam mesquinhos mesmo ou ela se martirizava demais por tudo?) que lhe doíam tanto no seu obscuro inconsciente.
E então, ela, que queria tanto se sentir mulher, não lavou o rosto após o choro, e não aproveitou a beleza que toda mulher tem após o pranto. Não passou um batom nos lábios trêmulos e secos. Não vestiu seu mais belo vestido. Não foi se divertir com os seus naquela noite. Não disse sim! àquele homem tão interessante que a telefonava às vezes. Não optou pela diversão. Não quis trabalhar.
Naquele dia, ela quis apenas ser.
E depois de tanto sofrer, de tanto chorar, de enxergar quem ela realmente era, ela resolveu que era hora de melhorar. Hora de enxergar que aquela estrela que via tão pontuda era, na verdade, um átomo, uma coisa microscópica que não poderia lhe fazer tanto mal.
O sol vem amanhã, disse ela à noite escura.
Durante o banho, lavou todo aquele dia horrível do corpo. Expurgou toda a sujeira, o suor e o ranço que a ilusão da estrela lhe trouxera.
Por fim, dormiu um sono pesado como não dormia há tempos. Não foi perturbada pela insônia, e nem mesmo sonhou os sonhos horríveis das últimas noites. Descansou, apenas.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

ego

Clara escrevia por inveja. Tudo que lia, mesmo que lindo, soava, pra ela, como um insulto, um desafio. Clara ainda era nova, tinha a idade em que as pessoas exibem os livros na prateleira e se sentem mais felizes por tê-los do que por lê-los.

Clara era tão nova que achava que sexo tinha a ver com amor e que cinema parecia verdade. Ela tinha um caderno onde escrevia suas coisas. A essas coisas, Clara deu o nome de arte. Ela mesma não sabia se, por ousadia, ou falta de criatividade.

Quando o caderno dela acabava, ela o guardava em algum lugar escondido, mas tinha certeza que, assim como segredos,
isso também era algo que guardava pra mostrar algum dia. Aliás, Clara era tão nova que ainda acreditava que amanhã, ou depois, ou não sei, qualquer coisa magnífica aconteceria.

Coitada de Clara, ela era tão nova que dava dó.


Jarleo Barbosa

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Dez anos


Saltou do carro e correu. Os sapatinhos de veludo vermelho iam se sujando no caminho de terra, as meias brancas e rendadas acumulando poeira enquanto ela disparava para os braços da avó. Dona Ana deu sua risada mais gostosa ao abraçar a neta.

Depois da repreensão da mãe por estar se comportando feito menino (você já é uma mocinha, Gabriela!), a menina beijou os pais, ouviu impaciente as recomendações exigentes da mãe em relação ao seu comportamento e se despediu. Começava a melhor semana do ano: férias na vovó.

Vovó Ana fazia pães em formato de bichinhos, bolachas, rosquinhas, geléias, doces, frango caipira, polenta. Levava a menina bem cedo para beber leite fresquinho da vaca e às vezes também para colher uvas nas videiras. A fruta preferida de Gabriela era uva. Sentava no chão e comia, enquanto os empregados da fazenda colhiam à sua volta. Nessas horas, vovó conversava bem austera com os outros adultos e Gabriela pensava no quanto ser adulto deveria ser chato.

Gabriela morria de medo das galinhas, mas adorava assustá-las. Esperava a galinha se agachar no meio da horta, para botar um ovo, e quando ela já estava lá há algum tempo, Gabriela gritava e a galinha saía correndo, apavorada. Dona Ana ficava uma arara, dizia que não ia mais dar ovo para a menina comer, mas sempre voltava atrás. Avós têm coração mole com os netos.

Dois dias depois da chegada de Gabriela, os primos também chegaram. Com eles por perto, ela se soltava ainda mais. Conseguia até superar a timidez e ir com eles chamar as outras crianças das fazendas vizinhas para brincar. Imitavam os super heróis da tevê, faziam peças de teatro para os adultos e, de noite, ouviam as histórias de terror que Pedro, um dos meninos, contava. Gabriela ficava apavorada, mas ficava lá até o fim. Seria um vexame sair correndo que nem um bebê assustado.

De todas as crianças, Pedro era a que mais intimidava Gabriela. Ela não tinha coragem de puxar assunto com ele. Abaixava a cabeça quando ele se dirigia a ela e respondia com um fio de voz. Nas férias anteriores, durante um pique-esconde, Gabriela não conseguia achar um lugar para se esconder e Pedro a puxou para trás do muro do galinheiro. Ela mal conseguiu agradecer, de tão nervosa. Por que ela queria entrar em um buraco toda vez que avistava o menino?

Durante o ano que se passou, ela entendeu. E naquelas férias, foi para a fazenda com uma expectativa e um nervosismo que nunca a acometera. Mal podia esperar a chegada dos primos. Logo ela estava lá, ouvindo as histórias apavorantes do vizinho, pendurada em cada palavra sua.

Mesmo sabendo de sua condição, Gabriela nunca conseguia puxar papo com Pedro. Depois de três dias de profunda agonia, resolveu confidenciar à prima mais próxima o quanto estava desgostosa com a situação. Para seu profundo pavor, a menina deu uma gargalhada e saiu correndo em direção às outras crianças. Gabriela entrou em pânico.

Naquela noite, estava bastante claro que todos já sabiam. Muitas crianças riam dela, discretamente. Pedro a encarou mais do que o normal durante sua história de terror. Gabriela, então, pela primeira vez na vida, saiu de perto da turma e foi para casa. Algum tempo depois, uma priminha mais nova apareceu.

- Gabi, por que você saiu correndo? Ficou com medo da história?

- Não, Alice. Eu só quis voltar mais cedo.

- Todo mundo sabe que você gosta do Pedro.

- Eu não gosto do Pedro.

- Ué. Só porque todo mundo sabe, agora você não gosta mais?

- Nunca gostei.

Gabriela passou a evitar as crianças. Passava o dia todo lendo na varanda. Ao final do segundo dia de sua ausência, Pedro foi chamá-la para brincar. A menina tirou os olhos do livro, olhou bem fria para o rapazote e respondeu que preferia ler e que ele deveria ir com as outras crianças. Pedro abriu a boca para argumentar, mas ela se levantou de supetão e, dramática, acenou com a mão que não queria saber e entrou marchando na casa.

Dona Ana, que sempre vigiava todos os netos, veio conversar com a menina. Afinal de contas, não é saudável uma criança de dez anos ficar trancafiada em casa enquanto as outras brincam lá fora. E Gabriela, que nunca contava nada para ninguém (ainda mais depois do episódio da prima fofoqueira), começou a chorar assim que a avó comentou sobre o quanto eram interessantes as histórias de Pedro.

Levou um susto tão grande que mal sabia o que fazer. Levou a neta para lavar o rosto e esquentou um leite com chocolate para ela. Assim que Gabriela se acalmou, percebeu que não escaparia do olhar inquisitivo da avó enquanto não confessasse o que a deixava tão triste. E contou tudo. A senhora ficou espantada com a maldade das primas e, muito mais que isso, preocupada com Gabriela. O que era para ser uma paixonite engraçadinha de criança acabara tomando proporções emocionais muito pesadas para uma menina de dez anos.

- Mas você gosta ou não gosta dele?

- Eu não sei, vó.

- Como não sabe, menina? Nessa idade, ou você gosta, ou não gosta.

- Eu não sei. – e, ao olhar desaprovador da avó, ela respondeu que – é como ter dor de garganta. Você tá acostumado com a sua voz e até gosta dela. Aí vem essa dor de garganta, e é horrível, e quando você se recupera, não reconhece mais sua voz. Sabe?

Dona Ana deu uma gargalhada.

- Sei. Quando eu era criança eu também sentia isso.

- Também gostou de um menino?

- É claro. Mas eu me refiro à dor de garganta. Eu também estranhava minha voz. Acho que é porque enquanto você está doente, você continua crescendo e sua voz continua mudando. Aí você a estranha quando volta ao normal.

- E os adultos? Como se sentem?

A velha sorriu, linda com seus tão brilhantes olhos verdes. Suspirou e, com o mesmo sorriso enigmático, respondeu:

- Os adultos dizem que não reconhecem a voz. Mas é só fingimento, eles na verdade se lembram direitinho de como ela era. Eles já cresceram e já mudaram de voz, não pode haver nada de diferente nela. Ser adulto é muito chato. Aproveita o que você tem, Gabriela.