sábado, 29 de março de 2008

Grito na madeira

Ficou fascinado com Ródia nos primeiros capítulos, com suas idéias incríveis e sua ação inovadora. Mas o Dostoiévski estragou toda a filosofia, pensava ele. Então fechou o livro antes do fim e foi fazer o que tinha que ser feito, pelos motivos que seu herói justificara.

Quando o relógio marcou duas da madrugada daquela quarta-feira 11, calçou as luvas (lã verde-bosta que a avó trouxera do Sul), pegou a faca na cozinha e saiu de casa, tomando o cuidado de não pisar nas tábuas do piso da sala que rangiam.

Correu o quanto podia. Entrou em um beco escuro e esperou. Sentiu vontade de urinar, como se estivesse brincando de pique-esconde. O coração batia calmamente quando ela se aproximou. Vinha cambaleando, magra, mal se sustentando nas pernas feridas e nos pés calejados. O cabelo queimado e sujo, os lábios rachados. Olhos de zumbi. Tão dopada que nem gritou quando a lâmina a atingiu.

Sangue, muito sangue. Afastou-se dela, despiu-se, lavou as mãos e o rosto com a água da garrafa que levara consigo. Vestiu roupas limpas, colocou as sujas em um saco plástico. Limpou a faca. Queimou o saco plástico em uma lixeira vazia.

Voltou para casa, deitou e dormiu, como se nada tivesse acontecido. Seu coração ainda pulsava calmamente. Teve um sono calmo e sem sonhos.

Acordou e não teve paz.

Não era remorso, nem pena. Nem lembrava do rosto da mulher que matara. Não lembrava dos olhos, do cabelo, do tom da pele, da estrutura física. Ele sentia uma angústia que nada tinha a ver com sua consciência, mas com a consciência alheia: precisava contar para alguém. Não era uma necessidade de se explicar, mas uma vontade de contar o ocorrido. Queria expor seu ato.

Queria expor seu ato mas não podia contar para ninguém! Era um tipo de coisa que não se conta para qualquer um, pois nunca se sabe qual será a reação das pessoas. Isso o deixava tão nervoso, precisava tanto revelar seu segredo, mas como fazê-lo sem escândalo?

Não fumava, mas fumou por acreditar que isso o acalmaria. Não comia, não jogou bola com os colegas de faculdade, não foi almoçar com a família no domingo. Simplesmente não conseguia seguir sua rotina de universitário frustrado. Nada importava a não ser a preocupação em divulgar o assassinato.

E então um dia, na biblioteca da universidade, na área do cemitério, enquanto tentava estudar para a próxima prova (fazia engenharia por insistência dos pais, mas queria mesmo era ser professor de geografia), encontrou a solução. Olhando todos aquelas letrinhas na parede de madeira à sua frente, tolas juras de amor e divulgações religiosas, teve uma idéia.

Pegou o compasso, e com o coração (finalmente) batendo acelerado e com força, escreveu, trêmulo: EU JÁ MATEI ALGUÉM.

Guardou suas coisas e saiu da biblioteca, flutuando. Agora todos saberiam, sem saber quem foi. Nem saberiam se era verdade ou não, mas ali estaria seu desabafo, eternizado, para que todos vissem. Olhou para o céu, azul, o sol se pondo, brilhante e imponente. Acendeu um cigarro e foi para casa.

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