terça-feira, 5 de maio de 2009

Nossos olhos

Antônio Campoli era um italiano bravo. Mas é que era o costume, o jeito da época. Viera para o Brasil aos seis anos de idade, para trabalhar na lavoura, e só aprendera o português por aqui. Era um homem forte, trabalhador. Tinha olhos fundos e cansados, olhos sonolentos mesmo quando desperto, claros mas com olheiras, aqueles olhos que mais tarde seriam classificados como olhos de ressaca do mar. Involuntariamente rancorosos. Olhos de Campoli, jamais falharam.

Antônio era casado com Rosa, italiana também, mãe sóbria e responsável de treze filhos. Comandava a cozinha como toda boa italiana: fazendo uma bagunça danada e ai de quem se metesse. Os treze Campoli trabalhavam na roça de café com o pai, os olhos de Campoli e a tez europeia judiados pelo sol brasileiro que banhava a fazenda em São José do Rio Preto. A educação escolar era garantida pelas vizinhas faladeiras que iam dar aula aos treze Campoli em casa. A manutenção da tradição italiana ia além do cardápio, ao contrário do que a maioria pensa. Antônio Campoli fazia todas as refeições sozinho na sala de jantar, enquanto os treze filhos e a esposa comiam na cozinha. Almoçar juntos, só no domingo, depois da missa. Que nem na Itália.

E ali, em meados dos anos trinta, naquela tão interiorana e paulista cidadezinha cafeeira, descobriu-se que João, o Campoli número nove, tinha alergia a lactose. Nada de leite para o menino. No máximo um naco de chocolate ao dia. Naquele tempo, chocolate era algo caro e amargo, e ainda assim todo mundo queria comer. Antônio Campoli mantinha sempre uma barra enrolada em papel metálico na gaveta do seu criado mudo. Depois do almoço, chamava João e dava a ele um pedacinho e dizia para comer bem devagar. Ignorava os olhinhos de Campoli marejados de inveja dos próximos em idade ao pequeno alérgico. Era pouco chocolate para tanta criança e tamanha alergia.

O fato é que João Campoli cresceu e ficou forte. Achou por ali no interior de São Paulo uma moreninha bonita e tratou de desposá-la logo. Dona Cinha teve um filho e duas filhas, todos eles bem Campoli. Viveram os cinco em uma cidadezinha do interior, gerenciando um armazém da forma mais honesta possível, como Antônio e Rosa ensinaram a João.

Paulo, o filho mais velho do casal, quando estava para terminar o ensino médio, pediu para ir estudar fora. Medicina, pai. Deixa eu estudar até o tempo que eu ficaria no exército. Então vai, menino, e vê se passa logo nesse vestibular. Não precisou de um ano: já no meio do cursinho passou na Universidade de Brasília e para lá foi correndo.

Campoli e esquisito como sempre fora, Paulo resolveu estudar Cálculo e tirou o único dez da sala. Foi tirar satisfação com ele uma irada estudante de Engenharia Elétrica, uma moreninha de nariz arrebitado chamada Márcia. Onde é que já se viu um menino da medicina tirar dez em Cálculo? Alguns anos depois, em seu aniversário de 24 anos, a alguns metros de seu bolo com 24 veadinhos de plástico, ele fez seus olhos de Campoli ficarem ternos e pediu a moça em namoro. Mais três anos e estavam os dois casados.

Três anos depois do casório, nascia sem conhecer os bisavós a primeira neta dos Campoli e mais um par dos já familiares olhos de ressaca italiana.

2 comentários:

Raio disse...

lindo!

Anônimo disse...

Filha, muito embora este texto esteja falho em alguns detalhes da história, fiquei muito emocionada. Achei lindo e muito poético.
Parabéns.
Márcia